top of page

261-A dor de Hua Fei

  • Foto do escritor: Rafael_Fera
    Rafael_Fera
  • 2 de out.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 6 de out.

Hua Fei estava sentada de pernas cruzadas. Ela usava um vestido completamente preto, escuro como a noite. Seu cabelo curto, também completamente escuro, criava uma visão impressionante, que parecia esculpida em um quadro. Sua figura estava envolta em uma aura de solidão, capaz até de mexer com quem a observasse.


Atrás dela, seus pais a olhavam com certo desamparo.


“Fei, Aldus deseja vê-la, assim que soube do seu retorno ele veio encontrá-la.” Disse Hua Jun.


Hua Fei não se virou, sua voz soou baixa e determinada: “Pai, estou de luto pelo meu marido, não tenho nenhuma intenção de me encontrar com outro homem.”


Hua Jun e Astrid se olharam, eles queriam dizer que o que aconteceu naquele mundo não era real, mas na última vez que fizeram isso apenas a irritaram. Eles não tinham como culpá-la, Hua Fei passou mais de 10 anos no Mundo do Samsara, sabe-se lá quanto tempo se passou para ela no tempo daquele lugar, quantas vidas.


Os dois ainda não sabiam exatamente o que havia acontecido, Hua Fei tinha acabado de voltar e não teve tempo nem vontade de explicar tudo a eles, apenas disse que ficaria sete dias de luto pelo seu marido que havia falecido.


Suas bocas se mexeram, mas nenhum som saiu. Sua mãe quase derramou lágrimas ao ver o estado de sua filha, mas conseguiu segurá-las.


No final, apenas suspiraram e decidiram se retirar. Se fosse antes, teriam insistido, talvez até a forçassem a um casamento. Afinal, esse era o destino da maioria das mulheres nascidas em famílias nobres: elas não tinham direito de escolher com quem se casar, seus destinos estavam nas mãos de seus pais, e o casamento representava acordos, uniões de famílias, raramente havia espaço para sentimentos.


Aldus era de uma família prestigiada e sempre demonstrou interesse em Hua Fei. O casal já estava planejando aceitar essa união. Apesar de Hua Fei claramente não ter interesse, pelo menos não recusava, reconhecendo seu dever. Mas agora as coisas estavam diferentes. Ela deixou sua posição clara, nem mesmo querendo vê-lo, pelo menos nesse período de luto. Mas o casal sabia que, mesmo depois disso, quando ela estivesse disposta a encontrá-lo, Hua Fei ainda não o aceitaria.


Se fosse antes, os dois a fariam aceitar seus arranjos, mas depois de quase perderem sua filha não estavam dispostos a fazer tal coisa. Depois de anos de tristeza e arrependimento, eles finalmente receberam sua filha de volta, e não estavam dispostos a fazer algo que pudesse destruir sua felicidade.


Hua Fei ficou sozinha no quarto silencioso, seus olhos olhando fixamente para frente, mas para nada em particular, como se sua visão pudesse atravessar as paredes e montanhas. No fundo daqueles olhos era possível ver uma tristeza difícil de mascarar.


Ela se lembrou das coisas que aconteceram desde que entrou no Mundo do Samsara. Ela nasceu, morreu e reencarnou várias vezes, presa naquele ciclo por milhares de anos. Passou por vários estilos de vida: rica, pobre, órfã, poderosa, fraca, morreu prematuramente, viveu por séculos, tantos que era difícil descrever.


Mas em todas essas vidas ela manteve sua determinação, seu orgulho como cultivadora e sua relutância em aceitar tudo.


Algumas vezes nascera em famílias poderosas que queriam forçá-la a um casamento político, assim como na vida real, mas Hua Fei não estava disposta a aceitar, não naquele mundo também, não com uma “pessoa que nem existia”. Muitas vezes ela abriu mão de tudo, fugiu de sua família, abandonando proteção, status e uma vida que provavelmente seria fácil, e cultivou por conta própria, enfrentando todas as dificuldades com a cabeça erguida.


Claro, também teve famílias que a apoiaram, pais que não queriam forçá-la, irmãos que saíam em sua defesa. As experiências pareciam infinitas.


Aqueles ciclos se repetiram, de novo e de novo, até que finalmente aconteceu: ela nasceu em outra família que havia arranjado um casamento.


Hua Fei já estava se preparando para abandonar tudo novamente, mas as coisas mudaram quando conheceu seu noivo e futuro marido. Ele era completamente diferente de qualquer pessoa que ela havia conhecido em todos aqueles ciclos.


Apesar de Hua Fei não ser uma pessoa extremamente sociável, ao longo de suas vidas ela inevitavelmente interagiu com várias pessoas, com vários rostos diferentes, mas, ainda assim, ela não conseguia se lembrar de alguém parecido com Kael.


Todos os supostos noivos que conhecera foram facilmente atraídos por sua beleza, fizeram de tudo para atrair sua atenção, conquistá-la, por meios honestos ou desonestos. Mas Kael não o fez. Ele propôs algo inusitado: um casamento de fachada, não demonstrando interesse especial nela. No começo, Hua Fei tinha certa dúvida, talvez fosse uma estratégia, afinal ela já havia visto muito. Homens tentando parecer indiferentes para atrair sua atenção não era novidade, mas, no final, o objetivo de todos era o mesmo: possuí-la.


Essa desconfiança era ainda mais forte por causa da técnica de cultivo de Kael, algo que ele estava claramente escondendo. Porém, Hua Fei aceitou sua proposta. Ela continuava determinada a não se envolver com uma pessoa “falsa”, mas se existia uma forma de evitar ter que abandonar tudo novamente, ela estava disposta a tentar. Se Kael tentasse algo, nunca seria tarde para ela cuidar dele.


Mas não demorou muito para os pensamentos de Hua Fei começarem a mudar. Já na primeira conversa que tiveram ela sentiu algo diferente, uma paz, tranquilidade e leveza há muito esquecidas. Os olhos dele não demonstravam luxúria, suas palavras não eram superficiais, cheias de enigmas e enganos. Na verdade, ela sentia uma certa distância, uma distância difícil de entender, mas estranhamente cativante.


Com o tempo, ela o conheceu melhor, entendeu que tipo de pessoa ele realmente era e, antes que percebesse, estava apaixonada, algo que nunca havia sentido antes. Ela se viu querendo protegê-lo, estar ao seu lado, ajudá-lo, dedicar sua vida a ele, e ela o fez.


Ela se arrependeu? Se arrependeu de ter mudado de ideia e dedicado sua vida a uma pessoa “falsa”?


De forma alguma. Na verdade, nunca usaria a palavra “falso” para descrevê-lo. Ela poderia aceitar que aquele mundo inteiro era falso, mas não Kael. Após conhecê-lo, ela percebeu que nunca havia vivido de verdade. Ela finalmente entendeu que existia algo além do cultivo.


Se tinha algo que ela sentia um pouco de relutância era o fato de eles não terem um filho. Mas tinham conversado antes e, estranhamente, como se por um consentimento tácito, ambos decidiram não ter. Os dois tinham medo de sumirem de repente, deixando seu filho para trás. Até mesmo Hua Fei, que já estava presa no Mundo do Samsara há tanto tempo, não conseguia descartar completamente a possibilidade de isso acontecer e, como se viu, ela estava certa. Após a morte de Kael... de alguma forma, ela conseguiu voltar.


Hua Fei não sabia o que aconteceu com aquele mundo, mas o simples pensamento de deixar um filho para trás, sozinho, já a assustava.


Mesmo assim, os 100 anos que passou com Kael foram mais significativos que os milhares de anos anteriores. Aqueles anos intermináveis agora pareciam apenas um sonho, e Hua Fei sabia que isso devia ser algo normal do Mundo do Samsara, para proteger suas mentes quando retornavam ao mundo real. Afinal, na maioria das vezes as pessoas passavam mais tempo lá do que viveram na realidade, essa era uma grande discrepância. Mesmo assim, os últimos 100 anos eram um pouco mais vívidos em sua mente, e ela sabia que não era apenas pelo fato de terem sido mais recentes, não, era algo diferente.


“Enquanto viver nesse mundo, sempre estarei com você.” Sussurrou Hua Fei.


Então ela fechou os olhos e uma lágrima escorreu pelo seu rosto. “Fiz essa promessa naquele mundo, mas ainda a mantenho nesse. Você será o único homem na minha vida... Kael.”




Comentários

Avaliado com 0 de 5 estrelas.
Ainda sem avaliações

Adicione uma avaliação
bottom of page